Por Múltiplo se entende um trabalho (objeto) artístico, quase sempre tridimensional, que é um de um determinado número de objetos produzidos em série, todos de idêntico valor econômico, material e estético. O múltiplo reflete a existência dos demais objetos da série a qual pertence, e tem de estar autorizado pelo artista. O abstrato dessa definição se deve a circunstância de que não se pode obter um conceito adequado do Múltiplo a partir das particularidades materiais de seus objetos. O número e a variedade dos múltiplos históricos e atuais mostram que os materiais e as técnicas utilizadas, o tamanho, a maneira de produzi-los e a tiragem não são dados suficientes.
Por tudo isso, se concebe o Múltiplo antes como uma prática determinada, teórica e historicamente fundada no contexto da produção artística em geral, que oferece uma ampla gama de possibilidades aos mais diversos objetos. Na fundamentação teórica tem um importante papel os conceitos de "original" e de "objeto único". A originalidade de um trabalho artístico confere a este sua autenticidade e legitimidade, pois normalmente remete a um determinado artista como autor da obra. Neste sentido, e excluindo a falsificação, um Múltiplo sempre é um original. Mas não é um objeto único, quer dizer, um produto único de um trabalho artístico único. O Múltiplo é uma edição limitada – comparável a uma impressão limitada e numerada de uma gravura.
Dentro da lógica de original, cópia, reprodução e falsificação, assentada principalmente no domínio da pintura, desenvolveu-se desde o Renascimento uma hierarquia de valores cujo topo, era ocupado pela obra de arte que saiu das próprias mãos do artista, a obra autêntica e aurática, de onde questões sobre a unicidade e a irrepetibilidade de uma obra eram discutidas apenas na base dessa hierarquia, no que diz respeito a falsificações e imitações "suplementares". Na estrutura dessa ideia de original, toda repetição ou imitação faz referência a existência de um original prévio e ausente, cujo valor aumentava com o tempo e reforçava a ideia de obra irrepetível. No Múltiplo, esta questão da originalidade e da obra única não parece surgir, mas parece se deslocar e se condensar em conceitos paradoxos. Assim pode-se encontrar, por exemplo, definições de Múltiplos onde eles são descritos como "obras originais multiplicadas" (Daniel Spoerri), "obras originais múltiplas" (René Block), "Multikate" (Peter Weibel), "publicações originais" (Linda Albright-Tomb), "Originais em série" (Karl Gerstner) e até "objetos únicos em série" ("Unikate in Serie"), Friedrich Tietjen).
Entre estes aparentes paradoxos configura-se também a ideia de que, por um lado, um Múltiplo é algo que o procedimento necessário para a sua produção já o descreve suficientemente, mas, por outro lado é algo que está quase sempre vinculado por um "selo" que é a "assinatura" do artista. O lugar da assinatura é assim o lugar de refúgio do caráter único, que a produção serial prejudicava.
Estas e outras contradições foram acentuadas de tal modo em alguns textos e na literatura à respeito, que o status especial do Múltiplo as vezes ameaça desaparecer entre eles. Isto se dá principalmente no fato de que o Múltiplo não tem caráter hierárquico, mas igualitário. Não é baseado numa referência vertical a algo original e de valor superior, mas numa referência horizontal a algo de igual valor e simultâneo. Seu valor não está em alguma diferença de grau, mas sim na existência de uma série. Repete o mesmo ao invés de reproduzir algo prévio. Cada objeto se resume a edição do Múltiplo, sua tiragem, como ideia, e também a ideia da multiplicidade do múltiplo. Em termos retóricos pode-se caracterizar a relação hierárquica como "sinédoque": um original tradicional representa a todas suas reproduções e é superior a ela. Em troca, a relação de igualdade, inerente aos múltiplos, é uma "metonímia": um exemplar pode substituir a outro. Um objeto é um múltiplo se existe outros objetos que não apenas são idênticos a ele, mas que podem ser trocados por ele. O Múltiplo é parte de um sistema móvel de equivalência, dentro do qual todo elemento pode ocupar o lugar do outro sem que os valores estéticos ou econômicos sofram modificações, seja a menor delas. Tanto faz adquirir o exemplar número 1 ou o exemplar número 30 da edição, pois entre eles não existe nenhuma diferença.
A condição para a igualdade de todos os exemplares da tiragem é que os múltiplos sejam – para empregar um termo do teórico Nelson Goodman – obras de arte "alográficas". Nestas obras existe uma "notação" ou uma indicação (um plano, um exemplar de prova ou uma instrução para sua produção) na qual ficam registradas todas as suas propriedades constitutivas. Todas estas notações são (como na execução de uma obra musical) "casos" ou instâncias" autênticas da obra. Neste sentido é irrelevante que os artistas façam cada exemplar com suas próprias mãos, terceirizem a sua reprodução ou utilizem de produtos fabricados industrialmente. O essencial é que se remeta à um procedimento concreto que regula e esclarece como e por quê um objeto pertence a uma série de múltiplos. Neste sentido, o desenvolvimento de uma notação ou indicação já reflete a possibilidade e a existência de múltiplos (inserida) em e (convertida) como uma série. Em virtude dessa relação especial de indicação e execução, o Múltiplo necessita de uma autorização, um endosso. Pois a possibilidade de executar uma notação de um múltiplo qualquer, em uma quantidade arbitrária de vezes, poderia acabar agregando-lhe um valor que depende da limitação de sua edição. Para que todas as produções de uma notação, executadas completa e corretamente, sejam igualmente legítimas, cria-se a necessidade jurídica de estabelecer quais exemplares são legais. Pois poderia haver múltiplos não autorizados pelo artista, e, portanto, ilegais.
A função do autor aqui em nada tem a ver com a criatividade ou a genialidade, mas sim com uma natureza jurídica. A assinatura sobre um Múltiplo é menos um signo áureo, como um "autógrafo", do que a codificação de um sistema de garantia no qual, dentro de um conjunto de múltiplos igualmente legítimos, seja possível distinguir os legais dos exemplares ilegais. Estes quatros aspectos juntos (serialização, paridade, espelhamento e autorização) fazem com que a produção do Múltiplo pareça uma investigação analítica da originalidade
A história do Múltiplo propriamente dito começa no final dos anos cinquenta. Sem dúvida que tanto historiadores quanto artistas apontam uma linha tradicional que parte do movimento Arts & Crafts, se estende ao construtivismo russo e a escola Bauhaus e chega até Marcel Duchamp. Por mais necessária e útil que pode ter sido esta genealogia para a legitimização do Múltiplo, se estudada à rigor, parece insuficiente, se não for "nuclearmente falsa", como foi qualificada em 1994 pelo historiador de arte Stefan Germer. Apesar do uso literal do conceito, este também seria aplicável às pinturas que Jean Fautier fez sobre suas gravuras entre 1949-1954, e que chamou "originaux multiples", ainda que não fossem cópias. O nascimento programático do Múltiplo é inseparável do contexto específico dos anos cinquenta. Época marcada pelo abismo aberto entre a celebração da originalidade e do ato criador, pelo lado do expressionismo abstrato e da pintura informal, e a tentativa pelo lado das neovanguardas de reduzir a produção artística ao nível da produção social dos meios de massa. No centro destas tensões surgiu o conceito de Múltiplo como uma posição alternativa que não desejava nem a notoriedade aurática e tão pouco desejavam que seus produtos fossem privados do status de obra de arte, ou inclusive, que fossem relegados, como objetos de decoração produzidos em série, nos "Confins da indústria de artigos de humor" (René Block).
Um ato fundacional do Múltiplo, pode ser considerado o trabalho do artista Daniel Spoerri em 1959, a Edition MAT (Mulitplication dÁrt Transfromable). Aqui a novidade era, sobretudo, sobre as três normas que deveriam cumprir os trabalhos: não utilizar técnicas tradicionais de reprodução (desenho, litografia, fotografia); não apresentar nenhuma palavra manuscrita e ser portátil. A Edition MAT não estava usando o conceito de Múltiplo pela primeira vez, mas era a primeira vez que se estabelecia para os trabalhos os conceitos de serialização, paridade e espelhamento. Foi proposto libertar a multiplicação do estigma da reprodução meramente substitutiva, e houve a tentativa de fundar um gênero próprio, dotar-lhe de leis próprias, e escrever sua história particular, o que explica a inclusão de obras da década de vinte dos artistas Marcel Duchamp (Rotolief) ou Man Ray (objet indéstructible) dentro do termo.
Depois da primeira onda de múltiplos, por ocasião de uma exposição de trabalho de MAT, o conceito seguiu até a América, onde uma galerista de Nova York, Marian Goodman fundou em 1965 a Multiples Inc., uma instituição especializada na produção e edição de múltiplos. Pouco depois, na Europa, a galerista Denise René tentou registrar o termo. Mas esta ambição se mostrou utópica, pois o conceito se estendeu rápido demais; desprendendo-se e indo além das normas de Daniel Spoerri, e, logo foi usado para designar todos os tipos imagináveis de edições. Isto não impediu, pelo contrário, que nos anos sessenta se investigassem sistematicamente a lógica e as possibilidades do Múltiplo. Basta mencionar a reflexão do artista Piero Manzoni sobre o valor da mudança cultural em seu Merde d’Artiste (1961), ou as instruções de George Brecht nas Water Yams (1963). Na Pop Art, Andy Warhol deu a sua obra uma estrutura de Múltiplo e Joseph Beuys concebeu seus Múltiplos como "formas físicas do pensamento". Ao mesmo tempo se desenvolveram formas próprias de distribuição que se deligavam dos canais comerciais estabelecidos e as galerias, iam desde a venda direta até a venda em supermercados. Mas ao final da década não faltaram as críticas. Como um termo médio que renunciava ao objeto único no sentido tradicional, mas ao mesmo tempo mantinha o objeto artístico e a ideia de propriedade, o Múltiplo enganava-se a si próprio. Na Bienal de Veneza de 1968 se podia ler observações tais que o múltiplo procurava a "democratização [..] ao invés da socialização da arte [...] reforma ao invés de revolução", ou a de que havia que multiplicar o "número de pequenos proprietários" e "afirmar sem limites o culto à propriedade privada" (Michel Ragon, curador do pavilhão francês.) Depois de 1970, as primeiras retrospectivas puderam observar que o Múltiplo tinha perdido seu sentido estratégico, mas tinha criado um novo segmento no mercado. Após uma fase de diminuição do interesse, no final dos anos oitenta esse meio artístico recuperou sua paridade com outros. Desde então, o Múltiplo não se baseia mais em um programa crítico, mas sim em seu uso. É mais uma prática artística: a da "pequena forma" que acompanha a arte em sua evolução fazendo comentários, ironias, reflexões e paródias, mas sempre feita em tom descontraído, sem muita ênfase.
Tradução: Ulisses Carvalho
Bibliografia
Multiples, The first Decade, cat. de exp. Filadefia
Museum of Art, Philadephia, 1971.
Multiples. Ein Versuch die Entwicklung des Auflagenobjektes darzustellen, cat. de exp. Neuer Berliner Kunstvereim, Berlin, 1974.
Das Jahrhundert des Multiple. Von Duchamp bis zur Gegenwart, ed. De Zdnek Felix, cat. de exp. Deichtorhallen Hamburg, Hamburgo, 1994.
The great American Pop Art Store. Multiples of the Sixties, cat. de exp. University Art Museum/California State University, Santa Mônica, 1997.
Peter Schmieder, unlimitiert. Der VICE-Verstand von Wolfgang Feelisch. Unlimitierte Multiples in Deutschland, Colonia, 1998.
Kunst ohne Original. Multiple und Sampling als Medium: Techno-Transdormationen der Kunst, ed. de Peter Weibel, Colonia, 1999.
Notas:
1. A sinédoque é uma linguagem que se entende em sentido literal ou figurado, e as figuras de linguagem se escapam das acepções literais para formar relações imaginárias com as coisas. É similar à metonímia e, às vezes, considerada apenas uma variação desta. A palavra tem origem grega, synekdoche, que significa "entendimento simultâneo". Em Ciência Nova (1725), o filósofo italiano Giambattista Vico se questionava como podia adquirir conhecimento se Deus não o revelava ao homem. Imaginando-se como um troglodita, supunha que a única maneira para compreender era por comparação entre o desconhecido e o conhecido, que é o próprio corpo do selvagem. Ao ouvir um barulho, o selvagem o compara com o que conhece e decide que é uma voz alta o que ele escuta, e esse ato de comparação constitui a forma poética da metáfora. Em seguida, o selvagem se pergunta sobre a causa daquele som e imagina um corpo enorme produzindo essa voz, e esse corpo é, pensa, o de um deus, e então a ideia de causa constitui a forma poética da METONÍMIA. Finalmente o selvagem se pergunta por que deus emite o ruído e decide que é porque deus está furioso, causa ou base conceitual, que para Vico constituí a forma poética da sinédoque. Não é bastante lógico que Vico considere o deslocamento do desconhecido até o conhecido de "conhecimento poético". Por sua vez, é o conhecimento poético que estrutura o influente estudo de Michel Foucault sobre os períodos de desenvolvimento histórico no Ocidente, As palavras e as coisas (1970), ele as identificava como epistemologias independentes. O Renascimento concebe o conhecimento como algo baseado na semelhança ou na metáfora. Os séculos XVII e XVIII, ou período clássico, concebe como identidade e diferença, ou metonímia; enquanto que o séc. XIX, durante o qual nascem as disciplinas modernas, concebe como analogia e sucessão, ou sinédoque. (N.T)↩
2. Para o poeta e teórico italiano, Sanguineti, as neovanguardas se distinguem das vanguardas históricas pelos seguintes traços: a) atenuação dos impulsos “românticos”, anarco-revolucionários; b) império da obsolescência acelerada dos estilos – presa, eles também, da neofagia que caracteriza a sociedade de consumo (Adorno já ironizara, em Dissonâncias, o “envelhecimento do novo”); c) tendência à substituição, como veículo do vanguardismo, do “movimento fluido, autor de manifestos incendiários, pelo “grupo” organizado, autor de regulamentações paraburocráticas das produção artística; e d) adoção de um experimentalismo “científico” e laboratorial, muito diferente do experimentalismo diletante e selvagem das vanguardas primitivas (com a nova permissividade do establishment face à vanguarda, o “laboratório” inovador vive em simbiose com o museu de gosto ecumênico).
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